quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Rede Cerrado lança carta política no II Encontro Nacional dos Povos das Florestas

foto: Pixel Imagem

O Cerrado esteve em evidência no II Encontro Nacional dos Povos das Florestas, que aconteceu até o dia 23 de setembro, em Brasília, DF. O evento foi uma iniciativa conjunta do Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS) e Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB).

A Rede Cerrado ofereceu ao público uma programação especial para discutir a situação do bioma e refletir sobre alternativas sustentáveis de produção.

O destaque ficou por conta da Caixa Preta, uma instalação fotográfica sobre os diversos agentes e conseqüências da degradação do Cerrado. Em meio a um mar de soja, cenas chocantes de queimadas, desmatamento, processos de desertificação e contaminação dos solos e das águas do Cerrado, constituíram-se num sinal de alerta à sociedade para o que acontece dia-a-dia desse bioma.

Além da Caixa Preta, mostra de vídeos e produtos e uma exposição fotográfica sobre os Povos do Cerrado, apresentaram aos participantes do evento a sociodiversidade existente no bioma.

Ao longo de três dias de discussões, representantes da Rede Cerrado, dos estados de Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, São Paulo, Tocantins e convidados do Piauí, reuniram-se em oficinas para discutir temas diversos, como mudanças climáticas, plantas medicinais e comércio justo. A Mobilização dos Povos Indígenas do Cerrado (MOPIC) também esteve presente e participou ativamente das discussões. Ao final, juntos Rede Cerrado e MOPIC apresentaram a “Carta dos Povos do Cerrado”, que segue abaixo.

CARTA DOS POVOS DO CERRADO

Brasília, DF, 23 de setembro de 2007

Nós, Povos do Cerrado, reunidos no II Encontro Nacional dos Povos das Florestas, pedimos a atenção de todos.

O Cerrado é uma das matas mais ricas do mundo, um mosaico de paisagens que guarda 5% de toda biodiversidade do planeta.

No coração do Brasil, o Cerrado se espalha por 200 milhões de hectares de terras contínuas. Somadas às áreas de transição e os enclaves, onde o Cerrado se avizinha da floresta amazônica, da mata atlântica e da caatinga, a área é ainda maior: um total de 315 milhões de hectares, ou 37% do nosso país, onde vivem aproximadamente 40 milhões de pessoas.

O Cerrado constitui-se num importante reservatório hídrico, onde nascem e se alimentam as principais bacias hidrográficas sul americanas. Por isso, o Cerrado é vital, nele pulsa a vida, nascem e correm as águas.

Ao longo de milhares de anos de ocupação humana, a diversidade ecológica do Cerrado também estimulou o desenvolvimento de igual diversidade cultural. Nós, Povos do Cerrado (indígenas, quilombolas, assentados da reforma agrária, agricultores familiares e populações tradicionais, como geraizeiros, veredeiros, quebradeiras de coco, vazanteiros, pescadores artesanais, retireiros, pantaneiros, agroextrativistas) representamos essa sociodiversidade. Nossos antepassados aprenderam a ver, ouvir e sentir os sinais da Natureza e nos legaram esse conhecimento. Essa é a nossa terra, em que deitamos os nossos mortos e colhemos a vida. O Cerrado é nosso lugar de viver e existir.

Mas apesar de sua importância e riqueza, o Cerrado está profundamente ameaçado. É nosso dever e desejo defendê-lo da ganância sem limites.

Grandes áreas de Cerrado são derrubadas a cada ano para dar lugar à pecuária e aos monocultivos de soja, eucalipto, cana-de-açúcar e mamona. A expansão dos monocultivos sobre o bioma gera perda de biodiversidade, expulsão e encurralamento de populações tradicionais, escravização de trabalhadores, poluição das águas e a erosão do solo, com riscos de desertificação.

Mas o mapeamento da cobertura vegetal do Cerrado, elaborado pela Embrapa Cerrados e divulgado pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), como dado oficial, afirma que 60% da mata nativa se encontra de pé. Não acreditamos nesse dado e reivindicamos a imediata revisão do estudo. Sabemos que mais da metade da área original de Cerrado já foi desmatada pela ocupação desordenada de seu território, pelos agronegócios e a destruição de suas matas para a produção de lenha e carvão.

Lamentamos perceber que o Cerrado continua sendo encarado como uma alternativa ao desmatamento da Amazônia e que estudos, como esse, fortalecem e armam os setores da grande produção, de argumentos para continuarem a destruir as matas do Cerrado e tudo que nele há de vida. Trata-se de um grave erro. Os biomas vizinhos e mesmo o meio ambiente global dependem do Cerrado para manter o seu equilíbrio.

Se queremos realmente controlar o aquecimento global, é preciso considerar a grande contribuição do Cerrado para o estoque de carbono e para a manutenção dos ciclos ecológicos e para o balanço de nutrientes das águas. Na Natureza tudo está ligado. As águas que caem nos gerais, chapadas do Cerrado, infiltram a terra, dando origem a pequenos veios que se irradiam até o mar, para depois a água tornada vapor, cair em chuvas na Amazônia – é o grande rio voador. Mas se desmatamos as chapadas e contaminamos os solos e as águas do Cerrado, as chuvas levarão também os sinais da destruição para além de suas fronteiras.

O desconhecimento geral sobre o Cerrado impede a sociedade de reconhecer a importância desse bioma para a manutenção do equilíbrio do meio ambiente global. Há 20 anos atrás, os líderes indígenas já clamavam por atenção aos sinais de desequilíbrio da Natureza, mas só as tsunamis puderam acordar a consciência da humanidade para os riscos de uma catástrofe mundial, que não respeita as fronteiras que inventamos.

Este encontro foi um passo importante em direção à construção de uma aliança estratégica entre os povos das florestas, sob a bandeira comum da defesa da vida. Contamos com a solidariedade de nossos irmãos, povos das florestas amazônica, atlântica e caatinga, para defender o Cerrado. Estamos dispostos a trabalhar por uma Aliança dos Povos das Florestas, real, ampla, responsável, que se traduza em companheirismo entre os povos e se baseie numa visão da Natureza como um todo integrado.

Aproveitamos ainda a ocasião para compartilhar as nossas principais propostas, no momento, para a reversão do quadro de degradação socioambiental do Cerrado, a proteção dos nossos direitos, enquanto Povos do Cerrado, e a construção de um novo modelo de desenvolvimento sustentável para o bioma:

- Revisão imediata do mapeamento da cobertura vegetal do Cerrado;

- Monitoramento e controle do desmatamento do Cerrado;

- Revisão do estudo do INPE que indica que o Cerrado é pouco vulnerável ao processo de mudanças climáticas;

- Aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) Cerrado-Caatinga, visando o reconhecimento desses dois biomas como patrimônios nacionais;

- Reorientação da atual política ambiental, de modo que os critérios socioambientais sejam transversais a todos os processos decisórios de planejamento e implementação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a fim de evitar novas ondas de degradação ambiental e desrespeito aos direitos individuais e coletivos no Cerrado – um dos principais biomas afetados por essa política de cunho desenvolvimentista;

- Criação e implementação imediata de mecanismos de participação efetiva e controle social em fases de planejamento e implementação do PAC;

- Elaboração de um mapa do ciclo das águas, baseado na análise dos teores de nutrientes e resíduos químicos mineralizados nas águas das chuvas, microbacias e mares, a fim de demonstrar a interdependência entre os biomas Cerrado e a Amazônia e suas conseqüências para o equilíbrio dos biomas brasileiros e do meio ambiente global;

- Criação de uma nova categoria de Unidade de Conservação de Uso Sustentável, a Reserva Agroextrativista, apropriada aos meios de vida característicos do Cerrado - proposta apresentada e aprovada pela Comissão Coordenadora do Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas (PNAP), em 2006;

- Regularização e ampliação dos territórios indígenas e de populações tradicionais do Cerrado;

- Fomento para a constituição de cinturões de uso sustentável no entorno de terras indígenas, incluindo RESEX, Reservas e Assentamentos Agroextrativistas, pequenas propriedades da agricultura familiar;

- Segurança de vida para as lideranças locais ameaçadas;

- Reconhecimento, formalização e incentivo ao desenvolvimento de iniciativas de educação diferenciada e apropriada para os Povos do Cerrado (a exemplo da Escola Geraizeira), em todos os níveis de ensino, fundamental, médio e superior, que favoreçam a valorização dos saberes tradicionais e a sua integração aos saberes técnico-científicos;

- Promover a consolidação e difusão dos sistemas de produção sustentável já existentes no Cerrado (com base em frutos nativos, plantas medicinais, animais silvestres e outros), por meio da imediata adequação dos marcos regulatórios e do fomento à produção, agroindustrialização local e comercialização;

- Suspensão imediata da abertura de novas áreas do Cerrado. Moratória do desmatamento no Cerrado, já!

Rede Cerrado e Mobilização dos Povos Indígenas do Cerrado (MOPIC)

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